Em 2015, a trajetória artística de Mariana Muniz é objeto do projeto Trajetória(s), idealizado pelo MUD em comemoração à carreira da artista cênica, que participou de eventos históricos que mudaram a maneira de pensar o movimento e a dança em nosso país. O projeto foi contemplado pela 18ª Edição do Fomento à Dança para a cidade de São Paulo e contou com diversas ações cujo objetivo é a revisitação e o compartilhamento de momentos significativos da artista, entre os quais: uma exposição fotográfica, que ficou em cartaz nos meses de agosto e setembro de 2015 no Centro de Referência à Dança de São Paulo; a circulação dos espetáculos 2Mundos e D’Existir; e o compartilhamento do acervo da artista por meio da exposição virtual Trajetória(s).
Exercitar o movimento de voltar-me para mim mesma, na perspectiva da história da dança no Brasil, para refletir sobre cada passo ou gesto artístico realizados ao longo de quarenta anos de muitos encontros e aprendizados foi, no mínimo, um grande esforço de atenção e que exigiu muita dedicação. O fato de tornar acessível ao público esse mergulho no tempo é uma honra para mim e espero que proporcione uma referência de qualidade para os estudantes de arte e o publico em geral interessado em saber dos processos e dos encontros que fiz com artistas de relevância em nosso cenário cultural. E porque me perguntei que memória era a minha, durante o processo de me recordar, cito o escritor José Saramago (1922-2010): “A memória é também uma estátua de argila. O vento passa e arranca-lhe partículas, películas, cristais. A chuva amolece as feições, faz descair os membros, reduz o pescoço. Em cada minuto, o que era deixou de ser, e da estátua não ficaria mais que um vulto informe, uma pasta primária, se também em cada minuto não fôssemos tentando, de memória, restaurar a memória. A estátua vai manter-se de pé, não é a mesma, mas não é outra, como o ser vivo é, em cada momento, simultaneamente, outro e o mesmo. Por isso devemos perguntar quem, de nós, ou em nós, tem memória, e que memória é essa” (SARAMAGO, 2003).
Rubens Caribé (1965) é um ator brasileiro com formação em canto e dança. Estreou em 1987 com Hair, de Antônio Abujamra. Desde então, tem se alternado entre o teatro, o cinema e a TV. Manteve um treinamento de mais de 15 anos de dança com Mariana Muniz. Ganhou o Prêmio Apetesp de Melhor Ator em 1995 por O Melhor do Homem e, em 1997, foi indicado para o Prêmio Apetesp de Melhor Ator Coadjuvante por "Hamlet" e para o Prêmio Shell/RJ de Melhor Ator por Rei Lear. Em 2015, foi indicado para o Shell/RJ de Melhor ator/SP por “Assim é se lhe parece”. Atualmente, está em cartaz, no Teatro Vivo, com a peça A Reação, com direção de Clara Carvalho.
Rubens Caribé foi meu aluno de dança desde o tempo do teatro Ventoforte, 1990, quando nos conhecemos. Ao longo de muitos anos foi amigo e parceiro de cena. Estivemos juntos, na cena, em “Hamlet”, de 1993, “Mãe Coragem”, em 2002, “O Fantástico Reparador de Feridas”, de 2009, e “Berro”, “Gestos” e “Umanoel”, no ano de 2013. Com um olhar muito aguçado para as questões da cena, me ajudou, com suas opiniões, em muitos trabalhos de criação, especialmente nos solos que realizei entre 2009 e 2011. Divulgou as minhas aulas no meio teatral como nenhum outro aluno. Graças a ele, entrei em contato com muitos atores, atrizes e diretores com quem desenvolvi trabalhos pelos quais tenho grande apreço, como “Hamlet”, com direção de Ulysses Cruz, “Mãe Coragem”, com a Maria Alice Vergueiro e Sérgio Ferrara como diretor e “O Fantástico Reparador de Feridas”, com Walter Breda, com direção de Domingos Nunez.
Em 2011, Mariana Muniz conheceu Eduardo Tolentino (1954), diretor e fundador do Grupo Tapa. É ele quem assina a supervisão geral do espetáculo 2 Mundos (2011) e D’Existir (2015). A artista ainda foi dirigida por ele nas peças teatrais Berro (2014) e A Mais Forte (2013), ambas as montagens sob os auspícios do Grupo Tapa.
O Grupo Tapa (inicialmente denominado Teatro Amador Produções Artísticas) foi fundado em 1974, no Rio de Janeiro, e se profissionalizou em 1979. Em 1986, o grupo optou por transferir-se para São Paulo. O grupo se notabiliza pelo teatro de repertório e pela montagem de clássicos: entre os autores encenados estão Shakespeare (A Megera Domada), Bernard Shaw (Major Bárbara), Anton Tchekov (Ivanov), August Strindberg (Camaradagem), Oscar Wilde (A Importância de ser fiel), Nicolau Maquiavel (A Mandrágora) e Luigi Pirandello (Vestir os nus); e também grandes autores brasileiros, como Arthur de Azevedo (A casa de orates, entre outras), Nelson Rodrigues (Vestido de noiva, entre outras) e Jorge Andrade (Rasto atrás, entre outras). Com 35 anos de atividade, o Tapa já recebeu mais de 80 prêmios, entre Shell, Mambembe, Molière, APCA, Qualidade Brasil e Governador do Estado.
Eduardo Tolentino é um grande diretor de ator e estudioso do teatro. Estou envolvida, até agora, 2015, com sua equipe de trabalho: Brian Penido Ross, colega em “A máquina Tchekhov” (2015) e professor no grupo de estudos de Tennessee Williams, Clara Carvalho, professora no grupo de estudos de Anton Tchekhov, e, Clara Carvalho e Denise Weinberg, diretoras de “A máquina Tchekhov”. Só no envolvimento pelo fazer, pelo exercício de “por a mão na massa”, para entender a densidade do trabalho de ator do pessoal do Tapa. O trabalho do grupo Tapa é de um comprometimento ímpar com a arte teatral. A palavra tem que se tornar corpo, tem que ser incorporada, vivida, amassada, lascada, esculpida, ou não valerá a pena estar em cena. O seu compromisso com a qualidade me lembra a relação de Grotowski e Peter Brook com seus espetáculos, que partem de um questionamento do sentido de atuar e de comunicar ideias e ações, aliadas ao estudo profundo das raízes do fazer teatral, que deve ser sempre vivo e atualizado a cada conversa, ensaio, sessão ou apresentação.
Em 2009, Mariana Muniz criou e interpretou o espetáculo de dança Speranza! Dona Esperança. O trabalho surgiu quando, em 2008, realizou-se a comemoração dos 80 anos da bailarina Ruth Rachou e escolheu-se a personagem Esperança, nome da avó do diretor Possi, para homenageá-la. Nessa ocasião, a Mariana foi dirigida por José Possi Neto, que conhecia desde 1983 em razão da peça teatral A Dama das Camélias: Um Delírio Romântico e do espetáculo Mal Aria Bá.
José Possi Neto (1947) é diretor, iluminador e figurinista. Dirigiu renomados artistas, como Marilena Ansaldi, Irene Ravache, Paulo Autran, Marieta Severo, Glória Menezes, Tarcísio Meira, Beatriz Segall, Raul Cortez, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, entre outros.
Encontrar José Possi Neto, depois de tanto tempo, me proporcionou o conhecimento íntimo de uma personagem que me cativou inteiramente. Possi se dedicou ao trabalho de recordar e tornar presente a memória do que havia feito com a Ruth Rachou e, ao mesmo tempo, olhar para mim no que era diferente e também congruente com o momento que estávamos vivendo artisticamente. Foi um trabalho muito intenso de ativação das sensações, do universo repressivo da personagem e do caráter libertador que essa história poderia ter para criação das cenas. A ideia do colchão que engole a personagem é simplesmente maravilhosa para revelar a profundidade da coisificação da personagem em sua solidão absoluta. Agradeço cada dia de ensaio, que começou com o apoio da Mara Borba, quando das comemorações do aniversário de Ruth Rachou, e se prolongou até a criação desse trabalho com o qual percorri muitas cidades de São Paulo e que teve uma ressonância muito pequena em relação ao trabalho que foi investido para criá-lo. Até bem pouco tempo guardava os objetos que utilizamos na “esperança” de em algum momento poder voltar a apresentá-lo. Trabalhar com José Possi Neto, para mim, ressignificou o meu envolvimento com a dança e o teatro. Me senti convidada a me despir e fazer um mergulho de corpo inteiro no universo das sensações que levam à criação das personagens de uma peça de dança-teatro.
Em 2008, Mariana Muniz formou-se em Eutonia pelo IV Curso de Formação em Eutonia no Núcleo de Formação Profissional de Eutonia Berta Vishnivetz, em São Paulo.
A Eutonia é uma prática corporal criada e desenvolvida pela alemã Gerda Alexander (1908 - 1994). A palavra eutonia significa “tensão em equilíbrio”, “tônus harmonioso” (do grego eu: bom, harmonioso e do latim tônus: tensão). O trabalho consiste no uso da atenção às sensações, promovendo a ampliação da percepção e da consciência corporal, um processo em que o eutonista acessa a sabedoria que é própria do corpo e usa-a a seu favor. O eutonista entra em contato com o tempo do organismo, com os ritmos internos e com o diálogo entre esse universo interno – sensações, percepções, emoções, pensamentos – e o externo – o corpo em relação ao espaço, aos objetos, aos outros seres, ao solo, ao ar, aos sons, às forças da física que atuam sobre o corpo, etc. À medida que conhece o corpo, aprende a economizar energia e equilibrar as tensões, reconhecendo suas necessidades de atividade, de descanso e incorporando hábitos saudáveis.
Muito tempo depois dos anos de trabalho com Klauss e Angel Vianna, que também sofreram grande influência da Eutonia, resolvi, em 2005, estudar essa disciplina de um jeito mais aprofundado, e me inscrevi no IV Curso de Formação em Eutonia. Estava com problemas nos meus joelhos quando resolvi fazer esse mergulho. Só vim à tona depois da formação, com os joelhos curados, para fazer mergulhos cada vez mais em profundidade. A Eutonia é inesgotável no seu modo de pensar o movimento e a relação dele coma vida. É uma prática para a vida inteira. Nunca mais consegui deixar de mergulhar em suas águas. Com a Eutonia, a minha base metodológica para ensinar e me preparar para o trabalho cênico sofreu um processo de conscientização que dura até os dias atuais.
A pedagogia da Eutonia está ancorada na pedagogia construtivista e nessa maneira de olhar a relação aluno/professor. O enfoque está no modo de se apreender os conteúdos, em como o conhecimento é produzido, sem utilização de induções ou sugestões. Nessa pedagogia, está implícita a ideia da percepção de uma rede conceitual onde a escuta com o corpo inteiro é base do processo de aprendizado. E esse aprendizado não tem fim, pois se torna um processo de aperfeiçoamento continuo na vida e na arte.
Graças à Lei de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, Mariana Muniz e Cláudio Gimenez criaram um núcleo artístico e fundaram oficialmente, em 2007, a Cia. Mariana Muniz de Teatro e Dança, que tem como principal característica o desenvolvimento de trabalhos artísticos que integram o universo da dança e do teatro.
A Cia. foi contemplada com o 2º edital de Fomento à Dança e, nesse mesmo ano, começou a pesquisa para a criação da trilogia inspirada em Hélio Oiticica: Parangolés (2009), resultado do cruzamento do conceito “parangolé” com a dança contemporânea, Nucleares (2009), que focalizou o samba e as dinâmicas corporais como objeto de pesquisa, e Penetráveis (2010), no qual a dança acontece sob a ótica das obras de Oiticica e apontam para novas regiões do fazer artístico. A Cia. deu continuidade a suas pesquisas de movimento na relação com as obras e as ideias do artista carioca até o ano de 2013.
Hélio Oiticica (1937-1980), é uma figura singular nas artes plásticas em nosso país. Artista carioca, pintor e escultor da segunda metade do século XX, teve muita relevância no panorama artístico brasileiro e obteve projeção internacional. Oiticica criou instalações de grandes dimensões, com a intenção de libertar-se da bidimensionalidade e desenvolver obras interativas e sensoriais, como é o caso de Penetráveis. Parangolés é outra obra que se tornou famosa. Inspirada no envolvimento do artista com os morros cariocas e no seu aprendizado do samba. Os parangolés são capas, estandartes ou bandeiras coloridas que podem ser vestidas ou carregadas e, que se tornam obras vivas quando o participante, ao vesti-los, dá-lhes vida.
A criação da Cia. Mariana Muniz foi um dos movimentos mais ousados que experimentei em minha trajetória artística. Inicialmente formada, em sua maioria, por ex-alunos da Universidade Anhembi-Morumbi, a companhia, ao longo de oito anos, obteve bastante reconhecimento do púbico e da crítica. Eu digo que fui ousada ao criar a companhia – junto com Cláudio Gimenez e o produtor José Renato – porque é muito difícil gerenciar um grupo de pessoas, mesmo que elas tenham muito em comum e, no caso da arte, um objetivo artístico.
A criação de trabalhos coreográficos num processo colaborativo, abordando temas não convencionais e o envolvimento com a ideia de pesquisa de movimento, exige uma boa dose de maturidade artística. Tive sempre nas mãos uma equipe jovem. Na verdade, uma equipe muito jovem de colaboradores. Usufruí do contato com a força da juventude deles na medida em que participei não apenas da concepção e dos processos de construção das obras, mas também atuei junto, cenicamente, em “Parangolés”, “Nucleares”, “Penetráveis” (Trilogia H.O.) e “Gestos”. Inventei, ou melhor, concebi trabalhos só para eles, como “Po-éticas”, “Nucleares na Rua”, “In-corpo-r-ações” e “TransVersos”. Praticamente um trabalho por ano, a maioria deles com apoio da Lei Municipal de Fomento à Dança da cidade de São Paulo. A equipe passou por muitas transformações ao longo desses oito anos, não só do ponto de vista de número de integrantes, mas do entendimento do sentido de se fazer e viver processos de criação, onde o conceito de coreografia se alarga e se relaciona intimamente com o de performance.
A mistura de linguagens, a utilização cênica das palavras, dos gestos e passos numa perspectiva não convencional é um trabalho muito complexo e que demanda paciência, muito gosto pela investigação e uma grande dose de coragem e destemor diante do desconhecido. Não basta ter técnica, no sentido da habilidade para executar passos e deslocamentos com precisão, pois, nesse caso, conta muito mais a disposição para mergulhar no não sabido, no vazio, do que qualquer outra coisa; conta mais a abertura para buscar o movimento ali onde você não suspeitava que fosse possível, ou se deixar surpreender por algo novo, que nasce depois de um esforço de imobilidade, ou de extremo cansaço de um excesso de movimento. Enfim, um trabalho que exige muita confiança e cumplicidade para ser construído. Penso que foi a falta de cumplicidade e confiança – por muitas e diversas razões que não vêm ao caso enumerar – nas possibilidades de ir mais longe através das investigações, muito mais do que a questão financeira, sempre viva entre nós, que acabou por minar a continuidade da equipe; uma equipe que se superou na entrega artística em “TransVersos”, último trabalho coreográfico realizado pela companhia.
A formação original era composta pelos bailarinos Aline Bonamim, Júlia Abs, Bárbara Faustino, Danielli Mendes, Ronaldo Silva, Talita Souza e Thais Ushirobira. Estrearam “Parangolés”: Bárbara Faustino, Danielli Mendes, Ronaldo Silva, Talita Souza, Thais Ushirobira e Mariana Muniz. Permaneceram na equipe desde a sua criação até a estreia de “TransVersos”: Bárbara Faustino e Danielli Mendes. Participaram da companhia em algum momento de sua trajetória: Amanda Correa, Gilberto Rodrigues, Viviane Fontes, Lau Francisco, Tatiana Saltini, Maurício Brugnolo, Alice Vasconcelos e o ator Rubens Caribé.
Os projetos contemplados nos editais de Fomento à Dança, nos ProACs de produção ou de circulação de espetáculos e Prêmio Funarte Arte nas Ruas, todos tiveram como um traço comum a abertura de oficinas para o público em geral e as apresentações nas ruas, parques, praças e CEUs (Centros Educacionais Unificados) da cidade e do estado de São Paulo. A companhia contou com colaboradores como Carlos Avelino de Arruda Camargo (jogos teatrais e história da arte) Frederico Santiago (voz), Karen Müller e Cláudio Gimenez (Eutonia), e uma equipe de criação: figurinos com Tânia Marcondes Bezerra, luz com Ricardo Bueno, músicas compostas por Ricardo Severo em parcerias com Celso Nascimento e Loop B, e assistência de direção e fotografia com Cláudio Gimenez.
Mariana Muniz também teve participação ativa na política cultural brasileira. Fez parte do Movimento Mobilização Dança, que, entre outras conquistas, conseguiu a criação e aprovação da Lei nº 14.071/2005, a qual instituiu o Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, pioneiro e único no Brasil. Desde sua primeira edição, o programa compromete-se a destinar recursos para pesquisa, produção, circulação e manutenção de companhias estabelecidas na cidade há pelo menos três anos, trabalhando pela difusão, reflexão e formação de novos públicos e criadores em dança contemporânea.
Passados 21 anos de sua vivência artística no Grupo Experimental do Balé da Cidade de São Paulo, naquela ocasião sob a direção de Klauss Vianna, Mariana foi convidada em 2003 por Cláudia Palma e Armando Aurich para atuar como professora e coreógrafa da Cia 2 do Balé da Cidade de São Paulo, onde permaneceu, entre idas e vindas, até 2007. Dirigiu os espetáculos Meta-sensoriais, trabalho coletivo para toda a Companhia, Um outro corpo, solo para Cláudia Palma, e Pequenas Paisagens, solo para Armando Aurich.
A Cia 2 do Balé da Cidade, uma lufada de qualidade em experimentações cênicas com bailarinos de técnica muito refinada, teve vida curta. Mas, durante sua curta vida, tive a sorte de colaborar, dirigindo e dando aulas para essa equipe maravilhosa. Dirigi solos para os dois bailarinos, Cláudia Palma e Armando Auric, que me convidaram para estar junto com eles numa experimentação coletiva, que dirigi e chamei de “Meta-sensoriais” (2007), porque eles iam muito além do sensível. Foi uma alegria muito grande ter a oportunidade de trabalhar com eles. Nenhuma dificuldade superou a vontade de seguir, até que a cena se constituiu num formato muito diferenciado do que até então haviam feito no Balé da Cidade. Acreditei, em algum momento, que esse trabalho seria a abertura para novas investigações cênicas da equipe, mas me enganei redondamente. O que se seguiu, quando novamente fui convidada para dirigi-los, foi uma série de desavenças que muito contribuíram para que a equipe e sobretudo a ideia de um corpo de baile, formado por bailarinos mais velhos e refinados, se extinguisse. Uma pena!
Após uma longa carreira como professora, Mariana Muniz entrou para a academia a convite de Ana Terra, que é professora-doutora do Instituto de Artes (IA) da Universidade Estadual de Campinas e foi professora (1999-2014) e coordenadora (1998-2002) do curso de Graduação em Dança da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, onde ministrou aulas de Técnicas de Dança, Dança-Teatro e Orientação de TCC, no período de 2001 a 2011.
Os anos Anhembi-Morumbi foram os mais férteis para mim do ponto de vista do refinamento como professora e diretora de elenco. Foi durante a minha passagem pela Universidade Anhembi-Morumbi que fiz o curso de especialização em Eutonia e fundei, junto com Cláudio Gimenez, a Cia Mariana Muniz de Teatro e Dança, formada principalmente por ex-alunos meus nesta instituição. Nela, conheci professores/artistas como Ana Terra, Tânia Marcondes Bezerra, Carlos Avelino de Arruda Camargo, Sílvia Geraldi, Frederico Santiago, Toninho Macedo, Marisa Lambert, Valéria Canno Bravi, Mônica Bammann, Acácio Vallim e Talita Bretas, dentre outros. Alguns deles são colaboradores até hoje em meus trabalhos artísticos e, também, idealizadores, como é o caso de Talita Bretas, do Museu da Dança (MUD), com a concepção deste projeto – Trajetórias(s).
No ano 2000, um parceiro essencial para a trajetória artística de Mariana Muniz entrou em cena: Cláudio Gimenez, arquiteto, fotógrafo e ex-aluno de artes orientais da artista cênica. Cláudio convenceu Mariana Muniz a participar de uma competição de “Lian Gong em 18 Terapias”, sediada na China, na qual acabaram por ganhar algumas medalhas por seu desempenho. Desde então, teve início uma parceria na vida pessoal e profissional que perdura até hoje.
Com Cláudio Gimenez retomei a cena, depois de uma parada de quase três anos, nos quais me dediquei ao trabalho com as práticas orientais. Ele me convenceu não só a viajar para a China, mas a retomar um trabalho com a cena que me fazia muita falta. Arquiteto de formação, mas com uma educação diferenciada pela pedagogia da Escola Waldorf, Cláudio me ajudou a retomar o trabalho com a cena em “Dantea” (1999), quando colaborou na direção e na fotografia. Aliás, nos conhecemos, do ponto de vista profissional, pelo seu trabalho como fotógrafo. Tornou-se indispensável em todos os processos de criação que concebi e realizei até hoje. Seu olhar sensível ao sentido do fazer teatral me direciona e me guia, também, nas escolhas dos parceiros de cena. Em 2007, fundamos juntos a Cia. Mariana Muniz, no momento em que ela “engordou”; em 2013, com “Gestos”, chegamos a ser nove em cena. Então, seguimos dialogando através das criações cênicas, até que ele se formou em Eutonia, em 2013, e passou a me dar aulas, em nosso espaço comum de trabalho, o espaço Ghut. Essas aulas se tornaram um alento e inspiração para pensar e vivenciar novas criações em dança e teatro. Nós estamos comprometidos nesta parceria de vida e arte há dezoito anos.
Em 1992, Mariana Muniz atuou na peça A vida é sonho, cuja direção é assinada por Gabriel Villela (1958), diretor, cenógrafo e figurinista brasileiro. Trabalhou com grandes atrizes, como Ruth Escobar e Regina Duarte, com o Grupo Galpão, além de ter assinado a direção de peças escritas por autores como Chico Buarque, Alcides Nogueira e Dib Carneiro Neto.
Biel, como o chamo quando nos encontramos, foi o diretor que mais me adulou, dizendo que tinha uma voz única e bela. Fizemos alguns trabalhos juntos, algumas peças em que atuei e outras em que apenas coreografei. Sua inspiração na liturgia católica – visível em muitas de suas montagens, na missa e em suas celebrações através de gestos, palavras (orações), canto, música e tradições processionais ‒ me coloca, me transporta para outros mundos espirituais. Mesmo quando ele subverte os sinais e símbolos, ainda assim, ele tem uma mente de profunda religiosidade. Parece que ele compreende esse universo no que ele tem de essencial, em termos de função e forma, para nosso imaginário. É brilhante no pensamento e acabamento dos cenários e figurinos das peças em que fica responsável por quase tudo. Agora, em 2015, começo a me mover e atuar desde um lugar que me lembra de Gabriel Villela, pelo viés de uma entrega amorosa que não dispensa o humor, e mesmo, um saudável sarcasmo cênico.
De 1990 a 1994, Mariana se integrou ao espaço do Teatro Ventoforte, onde deu aulas e realizou como atriz uma peça, Minueto do final do século, em parceria cênica com Ilo Krugli.
O Teatro Ventoforte foi criado em 1974 por Ilo Krugli (1930), ator, diretor, dramaturgo, cenógrafo e figurinista argentino naturalizado brasileiro. O Grupo Teatro Ventoforte dedica-se principalmente ao universo infantil, por meio da criação de espetáculos e de atividades integradas a um projeto de arte-educação. A temática dos trabalhos é o universo popular, mitos e lendas da América Latina.
Com Ilo Krugli, um artista excepcional, um talento invulgar para tudo e qualquer coisa que se relacione com a manufatura teatral, aprendi a sentir a delicadeza da entrega ao universo da música em cena. No “Minueto do Final do Século” (1994) trabalhamos com um grupo de músicos/atores. Esse foi o momento em que me dediquei ao estudo de flauta transversal e entrei na escola aberta de música para me aperfeiçoar. Agradeço a ele cada almoço em torno de uma mesa que sempre se transformava em palco. Uma alegria sempre à tona, aliada a uma consciência, ao modo argentino, de todos os últimos acontecimentos políticos no mundo e em nosso país. O destino me levou para outros cantos e nunca mais nos revimos. Estou em dívida comigo mesma em relação a essa inventiva e maravilhosa figura do teatro brasileiro. Preciso revê-lo.
As influências das artes orientais no corpo e na carreira de Mariana Muniz são extremamente visíveis. Seu primeiro contato em profundidade com o Tai Ji Quan aconteceu em 1988, quando a artista começou a ter aulas com o Mestre Liu Pai Ling. Em 1989, com a Profª. Maria Lucia Lee, praticou o Tai Ji Quan 108 Movimentos, o Tai Ji Espada e conheceu e praticou por muitos anos o Lin Gong em 18 Terapias e o Qi Gong dos Símbolos.
Maria Lucia Lee nasceu em Taiwan em 1949 e veio para o Brasil aos dois anos de idade. Formou-se no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (1972). Desde 1982, dedica-se ao trabalho de pesquisa e ensino das artes corporais chinesas e sua filosofia. Desde então, introduziu no Brasil diversos métodos de exercícios terapêuticos da Medicina Tradicional Chinesa, divulgando-os através de publicações, DVD´s e cursos. Maria Lúcia Lee, até hoje, me ensina, e está sempre a me lembrar que é necessário manter a mente aberta para o que acontece no chamado mundo espiritual. Atualmente, está envolvida com a tradução do Tao Te Ching e participa das nossas vivências de Eutonia, no Espaço Ghut. Aliás, ela tornou-se, desde 2010, a nossa principal incentivadora para a manutenção do Espaço Ghut, um espaço voltado para curso e trabalhos de cunho corporal e dedicado a ensaios para criações em dança e teatro.Em 1988, Mariana Muniz atuou na peça Lago 21, dirigida por Jorge Takla, em companhia de Elias Andreato, Walderez de Barros e do maestro Guga Petri. Por essa atuação, recebeu o prêmio Mambembe de melhor atriz coadjuvante. Conheceu, nesse mesmo ano, Ulysses Cruz, por ocasião da peça Corpo de Baile com o grupo Boi Voador.
Jorge Takla (1951) é um diretor de teatro nascido no Líbano, mas atuante no Brasil há quase 40 anos. Dirigiu uma série de renomados atores, como Raul Cortez, Etty Fraser, Marília Pêra, Beth Goulart, entre outros. Desde 2004, é responsável pela direção de montagens de musicais da Broadway no Brasil, como My Fair Lady e Evita.
Ulysses Cruz (1952) é um diretor de teatro brasileiro atuante há mais de 30 anos. Dirigiu uma série de renomados atores, como Marcos Frota, Cássia Kiss, Antonio Fagundes, Mara Carvalho, Renata Sorrah e Marco Ricca.
O encontro com Jorge Takla aconteceu em 1987, quando fazia “Blas-Fêmeas”, no teatro Off. Depois disso, começamos a conversar sobre a possibilidade de realizar uma montagem que unisse “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, e “Hamlet”, de Shakespeare. Era um sonho antigo do Takla. Tivemos muitos contratempos para entrar em processo, e também durante ele. Mas o que resultou foi um trabalho de uma qualidade inegável e pelo qual além de mim, também ele recebeu um prêmio Mambembe de melhor diretor desse ano. Do convívio com Jorge Takla guardei a lembrança de sua alegria no contato com os atores, o seu jeito de atormentá-los, no melhor sentido da palavra “ator” embutida no vocábulo, e a sua visão culta e viva dos textos da dramaturgia clássica e contemporânea no teatro”.
Em 1987 também conheci e trabalhei com outro diretor, o querido Ulysses Cruz, com quem realizei algumas parcerias como atriz e coreógrafa. Esse foi o ano de criação de “Corpo de Baile” com o grupo Boi Voador, grupo dedicado a pesquisas em teatro experimental e que me abraçou com muito carinho e atenção. Com Ulysses, coreografei também “A Cerimônia do Adeus”, quando conheci Cleyde Yáconis. Nossa parceria inclui a montagem de “Péricles, Príncipe de Tiro” (1995), no teatro do SESI, e segue até “Hamlet” (1997), que estreou no Teatro Sérgio Cardoso, nos anos 1990. De nossa parceira, trago o aprendizado da preparação intensa, tanto intelectual quanto física, para elaboração de trabalhos que pressupõem investigação de novos modos de atuar e lidar com as linguagens do teatro e da dança.
Mariana foi dirigida por Roberto Lage na peça Blas-Fêmeas, de 1987.
Roberto Lage (1947) é diretor teatral atuante no Brasil há mais de 40 anos. Assinou a direção de peças teatrais de renomados autores, como Gianfrancesco Guarnieri, Maria Adelaide Amaral, Mário Prata, José Rubens Siqueira e Renato Borghi, Chico Buarque e Nelson Rodrigues.
Com Roberto Lage fiz um encontro especial com o olhar teatral pelo viés do movimento dançado e do humor. Lage consegue olhar o corpo do ator e bailarino numa dimensão absolutamente teatral, a partir de sua percepção do ritmo da cena e do humor que pode estar envolvido nela.
Mariana conheceu Antônio Abujamra quando participou da peça Uma caixa de outras coisas em 1986 e, nesse mesmo ano, conheceu Marcia Abujamra por ocasião de sua participação na peça O corpo estrangeiro.
Antônio Abujamra (1932 – 2015) foi um diretor e ator do teatro brasileiro, conhecido como um dos primeiros artistas do teatro a introduzir as ideias de Bertold Brecht e Roger Planchon em espetáculos no país. Teve participação em grandes movimentos artísticos brasileiros como o Teatro Oficina, Teatro Livre e o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
Marcia Abujamra (1959) é diretora e produtora teatral, além de sobrinha de Antônio Abujamra.
Recém-chegada da França, eu estava no Rio de Janeiro, me sentindo perdida, sem saber o que fazer depois de um ano fora do país, quando recebi um telefonema de Joaquim de Assis, na época secretário de Clarisse Abujamra, dizendo-me que o Antônio Abujamra queria montar uma peça de dança-teatro e gostaria de saber se eu me interessaria em participar. Claro, voltei para São Paulo imediatamente. A partir desse trabalho, “Uma caixa de outras coisas” (1986), que foi apresentado em muitos lugares, além do CCSP [Centro Cultural São Paulo], onde estreou, fiz muitas parcerias com o diretor e ator, Antônio Abujamra, tanto como atriz e bailarina, ou como coreógrafa de algumas de suas montagens. Nunca foi muito fácil trabalhar com esse diretor tão dinâmico e voraz, no melhor sentido da palavra, por sua relação de exigência de qualidade em cena. Ele me ensinou muito sobre a “loucura” que o mergulho na cena demanda do ator e do coreógrafo. No mínimo, me fez ver e sentir a necessidade de uma insatisfação constante com o alcançado a cada sessão, a cada ensaio ou apresentação.
Márcia Abujamra, eu conheci através do bailarino Val Folly, (1951-1991), diretor de teatro e bailarino, que estava escalado para coreografar a peça “O corpo estrangeiro” (1986). Por motivo de saúde, ele sugeriu que eu fizesse a coreografia desta peça em seu lugar. Esse foi o único trabalho que fiz com Márcia e, por ele, recebi prêmio de melhor coreógrafa em teatro adulto.
Em 1985, Mariana viajou para a França para estagiar na Cia. de Maguy Marin e estudar dança moderna e contemporânea. Fez um curso de férias na Sorbonne, ministrado por Annick Maucouvert (professora de dança contemporânea na Université Paris Descartes de outubro de 1971 a junho de 1989) e estagiou na companhia de Maguy Marin, uma das grandes estrelas da dança contemporânea francesa.
Nesse período, teve a oportunidade de trabalhar como modelo para desenhos com o renomado fotógrafo Henry Cartier Bresson (1908 – 2004), considerado o pai do fotojornalismo.
Maguy Marin (1951) nasceu em Toulouse, na França. Maguy começou a aprender dança no Conservatório de Toulouse e, depois, em Estrasburgo. Em 1970, entrou para a Escola do Mudra, criada por Maurice Béjart, em Bruxelas (Bélgica). Em 1978, quando recebeu um prêmio internacional num concurso de coreografia em Bagnolet, seu trabalho como coreógrafa tornou-se conhecido. Influenciadas pela dança-teatro de Pina Bausch, suas coreografias são cheias de elementos teatrais e musicais que não pertencem apenas ao universo da dança.
O que mais me impressionou no estágio com a companhia de Maguy Marin foi minha dificuldade em fazer contato com os seus bailarinos. Depois de uma aula de balé clássico, à la russe, para iniciar a manhã de ensaios, cada um se envolvia com os seus afazeres para dar inicio ao trabalho coreográfico, pilotado por Maguy. Lembro-me de que nessa época estava em andamento uma coreografia que envolvia a dança espanhola. Desisti de dar continuidade nesse estágio, dois meses depois de iniciá-lo. Me senti totalmente fora do lugar, desproporcionada para a empreitada que o investimento poderia justificar. Curiosamente, voltei para São Paulo depois de um ano e fui convidada, por Susanne Link (Berlin, 1944) para fazer teste na Companhia de Pina Bausch, de quem ela era amiga. Recusei imediatamente, pois não conseguia me ver numa situação de competição em um país que se dizia mais frio e inóspito, do ponto de vista profissional, do que Paris, na França, depois das dificuldades de relacionamento humano que havia vivido. Por tudo isso, fazendo um resumo sumário de minha viagem à França, posso afirmar que o acontecimento mais importante foi o encontro, profundamente humano e inesquecível, com o fotógrafo Henri Cartier-Bresson. Esse encontro foi um presente dos deuses do destino.
Em 1984, Mariana foi dirigida por Stéphane Dosse na peça Nosso Senhor da Lama. Stéphane, que tem formação em dança e teatro pelo MUDRA, escola de Maurice Béjart, aconselhou Mariana a trabalhar a sua voz e investir mais na prática teatral. Esse conselho alterou significativamente o rumo da carreira da artista que, a partir daí, atuou em mais de 15 peças de teatro e incorporou essa técnica e esse modo de comunicação com o público em suas criações para a dança.
Stéphane Dosse (1953) é diretor de teatro e cineasta, com formação na Escola MUDRA (1970), criada por Maurice Bèjart.
O grupo Teatro do Aceno foi criado por Stéphane Dosse e se apresentou no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) em 1984. Era integrado por Ary França, Antonio Caloni, Marina Helou e Mariana Muniz.
O grupo do Teatro do Aceno foi uma junção de artistas da dança e do teatro, reunidos pela força visionária de um diretor que tinha uma formação muito sólida na França e na Bélgica. Stéphane Dosse, na época do Teatro do Aceno, estava recém-separado de Juliana Carneiro da Cunha, artista e parceira do diretor durante muitos anos. Sua perturbação com a separação não o impediu de continuar trabalhando no Brasil, e esse grupo foi um dos momentos mais criativos e férteis, antes que ele voltasse para Paris. Devo muito a ele a confiança na qualidade de minha voz como intérprete. Ele criou para mim uma peça chamada “Carta ao Pai”. E foi quando assistiu a esse trabalho que Antônio Abujamra ficou interessado em trabalhar comigo, algum tempo depois. Infelizmente, o Teatro do Aceno teve vida muito curta.
Mariana conheceu Ruth Rachou em 1980, após regressar ao Brasil, vinda dos Estados Unidos, onde estudou as técnicas da dança moderna na escola de Martha Graham, Merce Cunningham e Jennifer Muller. Na época em que integrava o elenco do Grupo Experimental do Balé da Cidade, Mazé Crescenti, sócia de Ruth Rachou, convidou-a para dar aulas na Escola, onde também trabalhava Klauss Vianna. Foi professora na Escola de Dança Ruth Rachou, onde ministrou aulas de Dança Contemporânea de 1983 a 1990.
Ruth Rachou é bailarina, atriz, coreógrafa e professora. É considerada uma das pioneiras da dança moderna no Brasil, difundindo a técnica de Martha Graham. Sua atuação artística conta com momentos marcantes da dança brasileira, como o Ballet do IV Centenário (1954 – 1955), a participação em programas de televisão e em filmes musicais; a participação como solista no Ballet Contemporâneo de São Paulo (1967) e em espetáculos do Teatro de Dança Galpão (1974 – 1981), como Caminhada e Isadora, Ventos e Vagas. Em 1972, funda a Escola de Dança Ruth Rachou, atual Estúdio Ruth Rachou, onde passa a ensinar técnicas de dança moderna e, mais recentemente, de Joseph Pilates.
Ruth Rachou é a pessoa mais silenciosa e misteriosa que já conhecei. Fiz aulas com ela para me preparar para o teste do Balé da Cidade e fiquei fascinada com a quantidade de pensamentos vivos que, intuí, estavam embutidos nos seus silêncios. Adorei seu jeito inteligente de misturar as técnicas de dança moderna, o seu modo de ser contemporânea. Havia encontrado com ela quando viajei para NY, num curso na escola de Jennifer Muller, que tinha bastante influência da técnica de José Limon. Já aí, fiquei impressionada pelo seu olhar observador. Foi uma grande honra ser professora em sua escola durante seis anos de imersão absoluta, em todos os momentos de mudança de endereço, em todos os seus ‘vai e vem’. Nessa escola ensaiei e fiz as primeiras apresentações do meu primeiro solo em terras paulistas – "Paidiá" (1989). A escola tinha uma atmosfera muito diferenciada e era voltada também para convivência e troca de ideias sobre arte. O mestre Klaus Vianna deu aulas durante muitos anos na Escola de Danças Ruth Rachou, hoje, Estúdio Ruth Rachou e pilotado por Raul Rachou. Raul, que admiro muitíssimo como professor e artista dedicado ao universo da dança em seu viés mais contemporâneo. O estúdio continua a trajetória de espaço inovador que vem desde que se chamava Escola de Dança Ruth Rachou. Encontrei recentemente com Raul Rachou, quando ele foi assistir A Máquina Tchekhov, no Teatro da Memória.
Em 1982, Mariana trabalhou novamente com Klauss Vianna (1928 – 1992), que a convidou para integrar o Grupo Experimental do Balé da Cidade de São Paulo (1982 – 1983) dirigido, nessa época, por ele. O Grupo Experimental surgiu com a finalidade de realizar pesquisas de movimento em coreografia, num processo colaborativo com os diretores, dentro de uma instituição que, tradicionalmente, não abrigava esse tipo de abordagem no trabalho coreográfico. A busca por novas formas de expressão e o desejo de renovação da cena paulistana foram os principais motores para a criação do Grupo Experimental do Balé da Cidade.
O Balé da Cidade de São Paulo foi criado no dia 7 de fevereiro de 1968 com o nome de Corpo de Baile Municipal, cuja proposta inicial era a de acompanhar as óperas do Theatro Municipal e se apresentar com obras do repertório clássico. Desde 1974, a companhia assumiu o perfil da dança contemporânea, adotado até os dias de hoje.
O Grupo Experimental de Dança do Balé da Cidade foi o meu primeiro contato com o mundo da dança paulistana. Significou minha entrada no mundo artístico da cidade de São Paulo, com suas contradições, competições e a sua aspereza e abertura para o novo. O Balé da Cidade foi o aprendizado difícil das diferenças de modos de produção em dança. Advinda de um universo de trabalho com pesquisa de movimento e coreografia como trabalho colaborativo, entrar em contato com a dura realidade de um treinamento sem relação com o trabalho de composição e ficar horas mergulhada na repetição de movimentos sem acesso ao que os motivou foi, para “mal dizer o mínimo”, exaustivo. Klauss Vianna fez o possível para que houvesse uma integração entre os bailarinos da companhia e os do Grupo Experimental. Não foi em vão seu movimento, pois muitas parcerias nasceram por força desta iniciativa. Depois de extinto o Grupo, eu fiquei no corpo oficial do Balé por mais dois meses e me demiti. Foram nove meses de trabalho intenso, durante os quais dancei muito os dois trabalhos que foram montados durante a existência do Grupo – Bolero e Dama das Camélias – e conheci pessoas que são amigas e colaboradoras até os dias de hoje.
Em 1980, Mariana viajou para Nova York para aprofundar seus estudos em dança moderna nas escolas de Martha Graham, Merce Cunningham e Jennifer Muller. O contato direto com essas diferentes visões do movimento possibilitou o refinamento técnico necessário para ampliar seu repertório didático e criativo.
Martha Graham (1894 – 1991) foi uma dançarina, coreógrafa e professora norte americana e um dos principais expoentes da dança moderna no mundo. Rompeu com as rígidas convenções do balé clássico ao desenvolver uma técnica de relação direta entre movimento e respiração, o que confere uma característica de expressividade aos movimentos, que buscam revelar o interior do homem. Fundou em 1926 a Escola de Dança Martha Graham e a Companhia de Dança The Martha Graham Dance Company, que ainda estão em funcionamento.
,p>Merce Cunningham (1919 – 2009) foi um dançarino, coreógrafo e professor norte americano, que iniciou sua carreira tardiamente, aos 20 anos, como solista da The Martha Graham Dance Company. Fundou a Merce Cunningham Dance Company (1953 - 2012), sucedida pela Merce Cunningham Trust (2012), sendo um forte contribuinte para o desenvolvimento da dança moderna. Teve como colaboradores de seu trabalho artistas de diversas linguagens, como John Cage (músico) e os artistas plásticos Andy Warhol, Jasper Johns e Robert Rauschenberg.Jennifer Muller (1944) é uma grande influencia na dança mundial há mais de 45 anos. Ela é conhecida por sua aproximação visionária e inovadora em dança-teatro, por suas produções multidisciplinares e que incorporam a palavra falada, música ao vivo e especialmente compostas e cenários inspirados em artistas, além da utilização de elementos não usuais em suas produções.
Mariana foi convidada por Graciela Figueroa, em 1979, a integrar o Grupo Coringa como bailarina.
Criado em 1977 pela bailarina e coreógrafa uruguaia Graciela Figueroa (1944), o Grupo Coringa reuniu bailarinos com formação diversificada, atores, mímicos, acrobatas e não bailarinos. O primeiro elenco foi composto por Graciela Figueroa, Ana Andrade, Carlos Afonso, Debby Growald, Grace Alves, Mariana Muniz, Michel Robin, Dolores Fernandes, Ligia Veiga, Lena Brito, Patrícia Hungria, Regina Vaz, Sheyla Akdar e Tânia Martins. Em seguida, integraram o grupo Beth Martins, Deborah Colker, Débora Frichman, Guto Macedo, João Carlos Ramos, Leila Nobre, Vera Lopes e Vanda Jacques, que mais tarde criariam suas companhias.
Trabalhar com Graciela Figueroa e fazer parte do Grupo Coringa abriu novas perspectivas na minha relação com o trabalho técnico em dança moderna e trouxe para mim a ideia de ser contemporâneo, no sentido, dentre outros, de misturar as linguagens, resguardando os seus traços essenciais. Foi através de Graciela que tive meu primeiro contato com o Tai ji Quan e com uma pedagogia que envolvia uma relação íntima do trabalho de base, o trabalho com a técnica de dança, e a criação cênica. Graciela tinha o poder de coreografar, misturando diferentes linguagens e estilos de dança, sem perder a noção do sentido de unidade plástica e sonora que poderia unir todas elas. A liberdade de exploração, de pesquisa de movimentos e o caráter de contestação de alguns dos meus trabalhos de criação, devem muito ao encontro com esta pessoa, grande artista, Graciela Figueroa.
De 1976 a 1978, Mariana foi convidada por Klauss Vianna a participar do Grupo Teatro do Movimento, um importante e decisivo divisor de águas em sua carreira.
O Grupo Teatro do Movimento foi criado em 1976 por Angel Vianna (1928) e Klauss Vianna (1928 – 1992), com subvenção da cidade do Rio de Janeiro. Trabalhava com técnicas da dança, teatro e improvisação e valorizava o processo de pesquisa e composição em movimento. Pode ser considerado o trabalho coletivo percussor da atual dança contemporânea carioca, pois rompia com os padrões estéticos do balé clássico e trazia a ideia de investigação dos processos de elaboração do movimento, do ponto de vista do sujeito em contato com o ambiente interno e externo. Fizeram parte do Grupo os seguintes bailarinos: Debby Growald, Dolores Fernandes, Graciela Figueroa, Jean Paul Rajzeman, Leonardo Jaime, Lúcia Cordeiro, Lúcia Correa, Luciana Baiocchi, Luciana Hugues, Maria do Socorro Fonseca, Mariana Muniz, Mariana Vidal, Michel Robin, Moema Correa, Patrícia Hungria, Paulo Contier, Paulo Guinot, Regina Vaz, Roberto Giovanetti e Silvia Caminada.
A ideia de questionar o sentido de fazer dança, de ter a sensação do corpo em movimento, de saber o que estava acontecendo do ponto vista anatômico e fisiológico, produziram em mim uma transformação radical. Posso afirmar que meu caminho artístico se divide entre antes de Klauss e depois de Klauss.
Klaus Vianna foi professor na Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Fui aluna desta escola preparatória para o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Meu encontro com ele deve ter acontecido por volta de 1974. Lembro-me dele me perguntado se não achava que fazer dança era uma forma de fazer poesia. A questão me tocou muito porque nunca havia feito relação consciente entre o meu aprendizado em dança e outros campos artísticos ou mesmo literários. Klauss tinha o poder de perceber conexões e criar relações que você nunca imaginou.
Formei-me em 1975, e, ele me convidou para participar do Teatro de Movimento (Klauss e Angel Vianna). Com esse Grupo, Klauss e Angel Vianna trabalharam com diversos coreógrafos, além deles, em momentos diferentes, tais como Oscar Arraiz, Lourdes Bastos, Graciela Figueroa e José Possi Neto; além de terem feito parceiras com músicos como Luciano Bério, Guilherme Vaz, Carlos Ziccardi e Egberto Gismonti. Da pesquisa de movimento do Grupo Teatro do Movimento resultaram trabalhos significativos, tais como Domínio Público (1976); Pulsações (1976); Luiza Porto (1976); Mal Ária Ba (1978); Construção (1979-1980) e a pesquisa corporal Significado e função de uma linguagem gestual e sua conotação no campo da Dança (1977-1978).
Nos 1970 e começos dos 1980, havia um envolvimento muito grande com o teatro. A nossa dança dialogava com o que se fazia e experimentava no teatro. Era o tempo, a época do “desbunde”, mais revolucionária do que qualquer revolução, pois mexeu com o comportamento da sociedade, seus valores, enfim... Apesar de eu já ter uma formação muito rica em todos os aspectos do aprendizado de dança, com profissionais muito bem avaliados na cena da dança no Rio de Janeiro, Klauss e Angel Vianna foram mestres, pois colocaram em questão, de um ponto de vista que unia arte e vida, o sentido de se fazer o que já se havia feito até então. Esse movimento de relação entre arte e vida teve uma profunda repercussão em todo o meu modo de articulação no mundo. A minha relação familiar se alterou, os amigos e a vida como um todo sofreram uma verdadeira revolução. Meu percurso na arte passou a se relacionar inteiramente com toda a minha vida. Passei a ter uma vida totalmente voltada para o mundo artístico.
Sai de casa e fui morar com meus amigos da dança e do teatro. Nessa época, dei aulas na Escola Martins Penna de Teatro, sob a direção de José Wilker, também por indicação de Klauss Vianna, e participei dos Concursos Nacionais de Dança Contemporânea da Bahia, onde ganhei um prêmio como melhor bailarina.
Fundamental no trabalho de Angel e Klauss Vianna sempre foi a abertura, a disposição para experimentar, para se dedicar a novas possibilidades de vivenciar o movimento, o pensamento sobre o movimento, sobre a vida e o sentido de se fazer arte em diálogo constante com a vida. Acredito que esta seja a coisa mais essencial, o ensinamento mais marcante no trabalho com Angel e Klauss. Havia, aliado a esse ensinamento, e parte essencial dele, a busca do autoconhecimento através das experimentações e das pesquisas artísticas.
Eles acreditavam na arte como um caminho espiritual e por suas ações e dedicação como mestres, como artistas e pesquisadores em arte, eles conseguiam transmiti-lo claramente. Nunca consegui separar os dois em termos de ensinamentos. Para mim, apesar de mais próxima do Klauss, Klauss e Angel formavam um todo, praticamente inseparável. Foi um choque para mim a separação deles quando Klauss veio para São Paulo.
Os pensamentos sobre pesquisa e criação de Angel e Klauss Vianna serão sempre vivos em qualquer tempo porque advindos de uma prática pedagógica e cênica de grande profundidade investigativa. Os modos de articulação e prática desses pensamentos em nosso século XXI dependerão, eu acredito, em grande parte, da forma como voltaremos a ler os seus pensamentos, inscritos no material a que temos acesso: por via direta de transmissão vivenciada no corpo, e/ou por via indireta nos artigos que foram escritos por eles e sobre eles, e no livro que Klauss deixou publicado.
Com apenas 12 anos de idade, Mariana Muniz foi descoberta por Gerry Maretzky (1930) e se mudou para o Rio de Janeiro a fim de continuar e concluir seus estudos de dança na Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde teve a oportunidade de estudar, além do balé clássico, a dança espanhola, ritmoplastia, jazz, história da dança, história da arte, didática, coreografia, neoclássico com influência de George Balanchine (1907-1996) e dança moderna. Disciplinas variadas que, posteriormente, influenciaram a sua multiplicidade artística.
A Escola de Dança, Artes e Técnicas do Theatro Municipal Maria Olenewa (denominação atual) é a primeira escola de dança do Brasil. Foi fundada em 21 de abril de 1927 por Maria Olenewa – primeira bailarina da Companhia de Dança Ana Pavlova da Rússia. A Escola oferece curso profissionalizante com aulas de balé clássico, pas-de-deux, repertório clássico, danças características, dança espanhola, balé moderno, composição e improvisação, história da arte, história da dança, terminologia da dança clássica, educação musical, comportamento e atitude profissional. Ao longo de sua existência, vem sendo responsável pela formação dos mais importantes nomes brasileiros que atuam no balé, seja como bailarinos, coreógrafos ou maîtres no Brasil e no exterior.
A Escola de Danças foi o lugar do aprendizado do ofício de artista, por excelência. Eu ainda não tinha ideia do que era mergulhar no mundo da arte cênica: do árduo treinamento físico e psíquico exigido. Não fazia noção do envolvimento pessoal e global necessário para estar nesse lugar: a cena. Foi um golpe para mim toda preparação e os testes para ter direito a entrar nesse espaço, na época, muito almejado pelos candidatos a bailarinos. Lembro que quase fui vetada porque não tinha “peito de pé” suficiente. Aliás, tive problemas com os meus pés desde o nascimento (pés chatos e pronados). Mas, afinal, consegui não só entrar, como participar do Corpo de Baile Jovem da Escola do Theatro Municipal, excursionando pelo país como bailarina e professora, e ainda me formar com menções honrosas em Dança Moderna e Dança Clássica. Virei professora da Escola pouco depois de formada, substituindo a professora Lurdes Bastos, meu primeiro contato com as possibilidades técnicas e expressivas da dança com os pés no chão. Foi lá que conheci o professor Klauss Vianna, que iria mudar completamente a minha visão do fazer artístico.
Aos 8 anos de idade, Mariana Muniz iniciou seus estudos em balé clássico (1964 – 1968) no Curso de Dança Clássica Flávia Barros, em Recife/PE.
Bailarina, professora, coreógrafa, examinadora e jurada, formada pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Flávia Barros (1934) é uma importante referência para o balé clássico, especialmente no Nordeste do Brasil. Funda em 1958, com Ruth Rozenbaum – hoje diretora do Studio de Danças em Recife ‒ o Curso de Danças Clássicas Flávia Barros, em Recife, sendo responsável pela formação de diversos profissionais nas décadas de 1960 e 1970. Em 1976, com Ariano Suassuna, cria o Balé Armorial do Nordeste, um importante feito para a dança na capital pernambucana, visto que esse foi o primeiro grupo de dança a receber apoio financeiro municipal. Nas décadas de 1980 e 1990, fixou-se no Sudeste, onde coreografou para companhias como o Ballet Stagium e o Cisne Negro, e lecionou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sem deixar de realizar trabalhos no Nordeste.
Flávia Barros foi meu primeiro contato com a disciplina necessária para se tornar um artista. Sua dedicação ao ensino de dança clássica, à coreografia e preparação de bailarinos se estende até hoje. Foi através dela que vim para o sudeste, sob a orientação artística de Gerry Maretzky, professora convidada por Flávia Barros para lecionar para seus alunos. Quando entrei na Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, recebi convite para participar, como bailarina convidada, de uma turnê de sua equipe pelo Nordeste. Flávia Barros me fez dançar como uma “condenada”, pois participava de quase todos os números de dança, desde o balé mais clássico ao folclore mais pernambucano. Sim, porque ela conseguia transitar na composição dos passos, na coreografia, desde o espaço mais erudito até o mais popular e folclórico. Perdi contato com ela há algum tempo. A última vez em que nos encontramos, em 2001, estava participando do projeto Dança Brasil, no Rio de Janeiro. Apresentava o solo de dança chamado “Túfuns”, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), do Rio de Janeiro”.
Nascida em Caruaru/PE no dia 10 de setembro de 1957, filha de artista plástico, Mariana teve contato com a arte desde criança.
As férias em Itabaiana, na Paraíba, cidade de minha mãe e dos meus avós, com certeza influenciaram diretamente algumas das criações em dança, notadamente o solo “Paidiá”, de 1989. Talvez a sede e a necessidade cênica tenham raízes no solo nordestino, árido e ávido de água, desde sempre. Para mim a água é um símbolo de conhecimento, de sabedoria; e a cena, o palco, no teatro ou nas ruas, o lugar privilegiado da troca teatral que tem o poder de saciar a sede e alimentar a vida.